Em todo o mundo, vivem-se hoje momentos de grande preocupação e desassossego causados pelo surto de um novo coronavírus, o SARS-CoV-2, responsável pelo desenvolvimento da Doença por Coronavírus, conhecida como COVID-19. Identificado pela primeira vez na cidade chinesa de Wuhan, em dezembro de 2019, o novo coronavírus surpreende tudo e todos com a velocidade e dimensão da sua transmissão, reportando-se já milhares de casos de infeção em 147 países, situação que levou a Organização Mundial de Saúde a declarar a COVID-19 como uma pandemia, uma verdadeira ameaça global.

Os efeitos desta guerra declarada à COVID-19 são visíveis também em Portugal. As ruas estão praticamente vazias, o trânsito diminuiu drasticamente, os transportes públicos circulam com poucos passageiros, a passagem nas fronteiras é controlada pelas autoridades, as companhias aéreas cancelaram inúmeros voos e multiplicam-se as ações de limpeza e desinfeção. Num momento tão desolador, a população, na sua generalidade, acata os apelos das entidades competentes e permanece em casa, respeita as distâncias de segurança e, com uma tremenda força de espírito e resiliência, organiza ajudas e entretenimentos através das redes sociais.

Ao viver esta situação tão dramática, é impossível não recordar o trabalho que temos vindo a desenvolver na Casa de Sarmento sobre a «gripe espanhola» ou «pneumónica», que se abateu sobre o mundo e o nosso país nos anos de 1918 e 1919. Tal como noutros pontos do mundo, em Portugal, a «gripe espanhola» desenrolou-se em três vagas, tendo sido a segunda, ocorrida entre finais de agosto e inícios de dezembro de 1918, a mais mortífera. Começou a manifestar-se a norte, na zona do Porto, mas devido à sua incrível virulência, nos inícios de outubro, já atingia o Algarve. Bem mais mortífera e devastadora do que qualquer outra epidemia, a «pneumónica» atacou preferencialmente os adultos jovens e dissolveu famílias inteiras.

Por recomendação do recém-nomeado Diretor-Geral de Saúde, o Dr. Ricardo Jorge, adotaram-se algumas medidas: determinou-se que todos os médicos deveriam comunicar os casos de gripe; recomendou-se a higiene e a desinfeção como medidas profiláticas; sugeriu-se que se evitassem aglomerações e impôs-se a limitação e vigilância das migrações dos trabalhadores agrícolas, bem como dos militares desmobilizados (recordemos que vivíamos os momentos finais da Primeira Guerra Mundial). O referido clínico afirmava mesmo, em 1918, que

«[n]ão fica mal deixar de visitar enfermos (…) e também não fica mal (…) acabar com os cumprimentos de uso – apertos de mão e ósculos de cerimónia, gestos que repugnam à higiene e até à cultura, restos que são do passado selvagem. As reverências chegam (…).»

Em Guimarães, no final do mês de setembro, a imprensa local fez soar o alarme. A gripe broncopneumónica, que já martirizava a população de Barcelos, Vila Real e Amarante, provocando inúmeras mortes, fazia-se também presente na cidade. Durante os meses da crise, entre finais de setembro e meados de dezembro de 1918, faleceram no concelho de Guimarães, com diagnóstico de gripe, mais de 500 pessoas (recorde-se que as estimativas mais conservadoras apontam, para todo o mundo, uma mortalidade de cerca de 50 milhões de indivíduos).

Nos jornais, lemos que a ação da «gripe espanhola» foi devastadora e a sua influência fez-se sentir em todos os planos da vida da comunidade. Atacando de improviso, atuando com rapidez, indiferente a géneros, idades e classes sociais, e altamente mortífera, a epidemia encheu os hospitais de doentes, habitantes da cidade, mas também das freguesias rurais, que lá chegavam transportados em carros de bois. No hospital da Santa Casa da Misericórdia, o surpreendente aumento do número de doentes colocou todo o pessoal hospitalar sob grande pressão, levando-o inclusivamente a pedir aumentos salariais. Os provedores, por seu lado, temendo a rutura dos serviços hospitalares (internamentos, consultas, curativos e medicamentos), multiplicaram os pedidos de subsídios ao Estado, recorreram por diversas vezes ao capital da instituição e implementaram medidas várias com o intuito de aumentar receitas e diminuir despesas.

O desenvolvimento da «gripe espanhola» obrigou também à intervenção da autoridade administrativa e de saúde pública. Para além de se apostar no isolamento dos doentes, internando-os no hospital provisório estabelecido nas Escolas de Santa Luzia, as autoridades locais procuraram evitar a concentração de indivíduos, impondo medidas que acarretaram mudanças no quotidiano dos vimaranenses: fecharam-se as igrejas e proibiram-se os atos religiosos aos domingos e dias santificados, bem como a peregrinação anual ao Santuário da Penha; as casas de espetáculos encerraram as suas portas; atrasou-se a abertura de todas as escolas oficiais e particulares; impediu-se a realização da feira. Por questões sanitárias, ordenou-se a remoção de todos os suínos do centro da cidade, a obrigatoriedade de limpar e desinfetar os prédios que tivessem contacto com esgotos, e pediu-se aos regedores das freguesias do concelho o envio de remessas de pinheiro e eucalipto para se queimarem nas ruas e largos da cidade. Para evitar o alarme social pela visualização do desfile quase ininterrupto de caixões a caminho do cemitério, proibiram-se os cortejos fúnebres e o transporte de cadáveres passou a fazer-se depois das 20 horas.

Num cenário de crise política e social, e com a população subjugada pela fome e a epidemia, ganhou especial importância a rede de solidariedades que se criou no seio da comunidade vimaranense para dar resposta a tantas situações aflitivas. Recorde-se, por exemplo, a iniciativa da Associação de Bombeiros Voluntários que, juntamente com a banda do Regimento de Infantaria nº 20, a Nova Filarmónica Vimaranense e o grupo musical dos «Guizes», organizou um bando precatório a favor do «hospital de pneumónicos» e dos doentes pobres do concelho; ou a de um grupo de particulares que criou a «Sopa Económica Vimaranense», que ofereceu gratuitamente uma refeição diária a 100 crianças pobres da cidade.

E já quando se celebravam missas em honra de São Sebastião, por se considerar debelada a terrível «gripe espanhola», eram poucos aqueles que ainda não tinham percebido que muito havia mudado em Guimarães. Através da imprensa da época, que pode ser consultada na página da Internet da Casa de Sarmento, avultam os relatos consternados que mostram como a fisionomia da cidade se alterou com o desaparecimento repentino e inesperado de tanta gente.

Hoje, somos mais uma vez surpreendidos pela Natureza. Convencidos da nossa capacidade de a controlar, julgávamos que estes eventos pandémicos estavam afastados para sempre. Eis-nos, contudo, confrontados com uma situação idêntica à vivida pelos nossos avós, há cem anos atrás, limitados às únicas medidas também ao dispor dos nossos antepassados: isolamento e higiene. Mas tal como eles, iremos certamente vencer esta pandemia e o medo que lhe está associado.

“Resta-nos, se é possível, escolher, contra o que nos faz tremer de apreensão e nos instala na instabilidade e no pânico, as forças de vida que nos ligam (poderosamente, mesmo sem o sabermos,) aos outros e ao mundo.” (José Gil, Público 15/03/2020)

Texto resultante da pesquisa desenvolvida na Casa de Sarmento por Antero Ferreira e Célia Oliveira, publicado no jornal “O Comércio de Guimarães” (18-3-2020)