A Casa de Sarmento disponibiliza neste espaço um acervo digital sobre a participação portuguesa na Grande Guerra. Facilita-se deste modo a consulta de importantes obras de difícil acesso, na sua maioria contemporâneas do conflito.

Portugal na Grande Guerra

Gil Santos

 

A Grande Guerra de 1914/18, ou Guerra de Catorze como vulgarmente é conhecida, foi um conflito global centrado, fundamentalmente, no espaço europeu e que teve início em 28 de julho de 1914, prolongando-se até 11 de novembro de 1918. A beligerância envolveu as grandes potências de todo o mundo, que se organizaram em duas alianças. De um lado, os Aliados, com a França, o Reino Unido e a Rússia e mais tarde os Estados Unidos da América, à cabeça e da outra, o Bloco Central que agregava os impérios Alemão e Austro-Húngaro, a Turquia e a Bulgária.

Este conflito à escala global deflagrou com a declaração de guerra da Áustria-Hungria à Sérvia e teve o seu epílogo com a assinatura do armistício, entre os Aliados e a Alemanha, em Compiègne, França, a 11 de novembro de 1918. Foram cerca de quatro anos e quatro meses em que esta guerra, generalizada, varreu sobretudo o continente o europeu, embora tivesse passado também por África e pela Ásia em menor escala. Tratou-se de um conflito que, mobilizando milhares e milhares de soldados dos cinco continentes, alterou a geografia administrativa, política e económica do mundo e, particularmente, da Europa que nunca mais foi a mesma. O desfecho desenhou um mundo novo, um mundo com novos equilíbrios geopolíticos, fruto de mais de dez milhões de mortos e quase o dobro de feridos e desaparecidos.

Olhando para este prélio, à distância de um século, conseguimos perceber que os principais beneficiários foram os Estados Unidos e o Japão, potências não europeias, que emergiram fortalecidas das cinzas da destruição. Questionamo-nos se seria este o time after que os principais contendores pretendiam, quando deram ao gatilho peLa primeira vez no verão de 1914. O Bloco Central foi esmagadoramente derrotado. De uma paz construída à força, na ponta da caneta, viriam a germinar nacionalismos extremos que estiveram na origem de um novo conflito mundial em 1939, este ainda mais devastador e que culminou com nova vitória dos Aliados em 1945.

Adriano Sousa Lopes, Lacouture sob o bombardeamento de 9 de Abril , s.d. [MNAC]
Adriano Sousa Lopes, Sepultura portuguesa na terra de ninguém, c. 1918 [MNAC]

A PARTICIPAÇÃO PORTUGUESA

Portugal, país periférico da Europa, distante fisicamente do olho do furacão, não deixou de sofrer direta e indiretamente as sevícias da refrega. A notícia da declaração de guerra da Inglaterra, nossa velha aliada, à Alemanha, chegou a Lisboa a 4 de Agosto de 1914. Nesse mesmo dia, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros britânico, Eyre Crowe, aconselhou-nos à declaração da neutralidade, pois em caso de um ataque alemão a qualquer das nossas possessões ultramarinas, sua Majestade, a rainha de Inglaterra, viria em nosso auxílio, em nome da ancestral aliança luso britânica que nos unia.

O governo democrático da viçosa República compreendeu, de imediato, o impacto que a guerra teria num país pobre e fragilizado pelas atribulações derivadas do fim de mais de oitocentos anos de monarquia. No entanto, as vontades repartiam-se entre uma neutralidade prudente e uma beligerância apetecida! Guerristas e anti-guerristas esgrimiam, entusiasticamente, os seus argumentos. Essa turbulência em nada favorecia a estabilidade política e o progresso que a República preconizava.

A importância estratégica dos nossos territórios africanos, aliada à dimensão periférica e muito frágil da metrópole, aconselhou, logo a seguir ao assassinato de Francisco Fernando em de Sarajevo, a uma preocupação muito peculiar da República portuguesa. Ainda longe da possibilidade de uma participação direta na contenda, a 21 de agosto de 1914, Bernardino Machado decretou a organização e o envio de dois destacamentos mistos de tropa para defesa das incursões alemãs em Angola e Moçambique. O sul de Angola e o norte de Moçambique foram palco de importantes esfregas entre as nossas tropas, mal preparadas, e os invasores germânicos que lançaram o pânico um pouco por todo o espaço colonial africano. Entre 1914 e 1918 foram mobilizados cerca 35 000 homens para combater nessas ex-colónias portuguesas. Uma parte significativa deste contingente chegou a África doente e desmoralizado. Incapaz de resistir às terríveis condições de higiene vividas durante a viagem e a um clima quente e húmido a que não estava habituado, sofreu consequências desastrosas que em muito estão ainda por estudar.

Em 1916 a posição de Portugal alterou-se. A partir de março tornou-se um país formalmente envolvido, por força da declaração de guerra que a Alemanha lhe dirigiu na sequência do aprisionamento, a pedido dos ingleses, dos vasos de guerra alemães e austríacos refugiados nas águas neutrais portuguesas e nos seus portos de abrigo. Com apoio financeiro britânico, formou-se o Corpo Expedicionário Português (CEP). Os preparativos para fazer seguir para a Flandres francesa uma força militar, nunca inferior a uma divisão, tiveram início com uma larga operação de mobilização. Dedicou-se quase todo o ano de 1916 à preparação daquele Corpo. Segundo o plano aprovado pelo Estado-Maior, o CEP, subordinado ao exército britânico, deveria constituir um Corpo de Exército com comando próprio num total de 55 000 efetivos. O comando de uma primeira divisão de instrução reforçada, com um total de 20 000 homens, foi entregue, a 15 de agosto, ao general Fernando Tamagnini. Apesar da falta de meios, da inexperiência em contexto da guerra de trincheiras e do pouco tempo disponível para a instrução, conseguiu a preparação básica destes homens. O resto da instrução havia de se completar na Flandres. Este facto constituiu aquilo que os republicanos guerristas apelidaram de Milagre de Tancos.

Como Gonçalo Silva escreve no seu blogue:

Tamanho feito foi consagrado a 22 de Julho de 1916 numa cerimónia que ficou conhecida como «A Parada de Montalvo». Perante as mais altas individualidades do estado, bem como dos embaixadores dos países aliados, desfilaram ordenadamente as unidades de Cavalaria, Artilharia e Infantaria. Contudo, nenhuma manobra de propaganda, por mais bem orquestrada, poderia alguma vez ocultar o grau de impreparação destes 20 000 portugueses para a guerra de trincheiras onde foram lançados. Deram corpo à expressão “carne para canhão”.

https://aoleme/2017/07/03/parada-de-montalvo/

Apesar da grande resistência civil e militar, o Governo foi intransigente e em 30 de janeiro de 1917, fez embarcar, no cais de Alcântara, perante forte contestação, o primeiro contingente com destino a Brest. Daí seguiria para o front na região de Aire-sur-la-Lys, como se escreve na sinopse de um obra sobre a participação portuguesa na Grande Guerra:

“Da calma medieva do Portugal profundo, para o terror da guerra na Flandres, foram enviados homens simples, enganados, cujas vidas mudariam para sempre. A ferro e fogo, fustigados pelo frio, pela fome e pela doença mas sobretudo pela metralha, viveram momentos únicos − terríveis − no abrigo, no hospital de campanha, no cativeiro e na trincha.”

Santos, Gil, A saga de um combatente na I Guerra Mundial, de Chaves a Copenhaga, Âncora, 2014

 

A 11 de novembro de 1917, o destino dos portugueses ficou dramaticamente traçado. Na Mairie de Mons, reuniu o Oberst Heeresleitung, em conselho de guerra, sob o comando de Ludendorff, general quartel-mestre das forças armadas alemãs, para definição de uma estratégia que acabaria com o conflito a favor dos alemães. Desse plano resultou a grande ofensiva de 9 de abril de 1918, conhecida por Batalha de La Lys, que viria a transformar-se num autêntico calvário para as nossas tropas. Um verdadeiro horror para quem já tanto sofrimento tinha experimentado. Naquela noite de nevoeiro intenso, cada soldado só conseguia enxergar a morte ou a desonra da prisão inimiga. Ao longo dos anos de 1917 e 1918 o CEP participou em vários combates. Porém, a sua intervenção ficou marcada por esse acontecimento trágico. O CEP foi destroçado e de uma Brigada, a do Minho, resultaram mais de 400 mortos e cerca de 6 500 prisioneiros. A participação portuguesa na guerra teve o seu epílogo nessa malfadada noite, com uma pesada derrota. Mas, apesar disso, tivemos o privilégio de estar do lado dos vencedores e desfilar o orgulho da vitória na Avenue des Champs-Élysées em 1919, colhendo os louros e os benefícios do armistício.

Adriano Sousa Lopes, Ferme du Bois, distribuição do rancho s.d. [MNAC]
Adriano Sousa Lopes, Uma encruzilhada perigosa, c. 1918 [MNAC]

ARQUIVO DA GRANDE GUERRA

Estudar a Grande Guerra é fascinante. No entanto, mais entusiasmante ainda, é perceber a participação portuguesa naquele conflito pelos contornos sui generis que agrega. Muito já se escreveu, sobretudo na comemoração do centenário. Muitas obras foram publicadas e muita gente se interessou pelo tema. Todavia, muito mais há ainda a ser estudado. Nem sempre quem se interessa por este tema tem a possibilidade de ter à mão os materiais necessários a esse estudo, porque se encontram dispersos por muitas bibliotecas públicas e privadas e alguns desses documentos são tão raros que só mesmo nalguns espaços de referência podem ser encontrados.

No propósito de facilitar o estudo de quem se interessa pela Grande Guerra, a Casa de Sarmento está a constituir um acervo eletrónico de documentação que permite reunir um conjunto significativo de obras de autores portugueses já desaparecidos. Obras escritas durante o decurso do conflito ou logo após a sua conclusão. Essas obras estão disponíveis em formato digital para que possam ser consultadas e, dessa forma, contribuir para acrescentar mais interesse e mais conhecimento a este episódio histórico da participação lusa nesta Grande Guerra.