“Este velho livro teve sempre para mim um grande encanto. Antes de o ler, ouvi-o da boca de minha avó, miguelista ferrenha, que me contava, sentada no banco do quintal, a guerra dos dois irmãos.

(…) Ouvi-lhe todo o cerco, assisti com ela à entrada dos sete mil e quinhentos esfarrapados «que só venceram por traição do Povoas», e a outras peripécias que mais tarde procurei neste volume a que faltavam folhas.

(…) Quase lidei com todos estes fantasmas. Foi por isso decerto que o livro sempre me encantou, apesar de escrito numa língua-de-trapos. E talvez a língua arrevesada lhe aumentasse ainda o prestígio… Figurava-se-me ter ao pé de mim o pitoresco inglês descrevendo o Saldanha, o Torres obstinado na defesa da Serra e sem vintém para rapé, D. Pedro despindo o casaco para ensinar um carpinteiro a talhar o reparo duma peça, os labrostes dos arredores, com o saco às costas e a faca no saco, à espera do assalto à «rica cidade dos malhados» … – os quadros, as cenas, as figuras, que Owen, observador inteligente, anota e põe de pé com realce e precisão.

(…) Aí têm as razões porque este livro me interessa. Tem o prestígio da desgraça. Depois é simples. Depois misturou-se aqui alguma vida de Camilo. É também o depoimento dum estrangeiro sobre as nossas coisas, e dum estrangeiro que sabe ver, encontrar o traço preciso, ou pôr de pé um retrato em seis linhas flagrantes. Limpei-o aqui e ali para o tornar legível, procurando completa-lo com observações doutro inglês, Napier, e com algumas notas mais. Tudo isto que hoje nos parece minúsculo e longínquo diante da calamidade que revolve a Europa, se passou entre os quatro muros da nossa casa. Eu sou tripeiro. E, como já disse, ouvi muitas vezes esta história contada por minha avó na casinha sobre o rio, o que não se esquece… Estão à minha roda o soldado, a filha schakspereana, que morreu assombrada, com olhos de espanto que ainda hoje enchem de aflição – e sem ter compreendido – e sem ter compreendido!… Esperam outras, outras ainda…”

Raul Brandão, prefácio de O Cerco do Porto, do Coronel Owen, 2.ª ed. Porto: Renascença Portuguesa, imp. 1920. (Biblioteca histórica; 1).

No ano em que passam 200 anos sobre a Revolução Liberal em Portugal, lembramos o contributo do escritor da Casa do Alto, Raul Brandão, na obra memorialista do Coronel Owen, O cerco do Porto.

O Cerco do Porto, evento de pronunciado alcance na afirmação do Liberalismo em Portugal, decorreu entre Julho de 1832 e Agosto de 1833, opondo forças absolutistas, fiéis a D. Miguel, e liberais, apoiantes de D. Pedro. O Coronel Owen, militar inglês que se encontrava em Portugal desde o período das invasões francesas, vivia no Porto quando dos movimentos bélicos e, apesar de não ter incorporado qualquer agrupamento militar, obedecendo a indicações superiores, colaborou com D. Pedro durante o período que decorreu o conflito. O testemunho do Coronel, um dos mais completos sobre o confronto, contribui grandemente para a compreensão da Revolução Liberal Portuguesa. Owen desenvolveu com assinalável detalhe as operações militares, assim como descreveu os antecedentes do liberalismo, a configuração sociopolítica da época e os principais intervenientes da causa liberal e do absolutismo.

O cerco do Porto, editado pela primeira vez, pelo Coronel Owen, em Londres no ano de 1835, foi por Raul Brandão “ressuscitado”, em 1915 (tendo tido, cinco anos mais tarde, segunda edição revista), quando o prefaciou e enriqueceu com diversas notas e ilustrações de imagens e documentos coetâneos aos acontecimentos narrados.

Raul Brandão, militar, jornalista e um dos grandes vultos da literatura portuguesa da primeira metade do séc. XX, dedicou especial carinho ao testemunho de Owen, assim como a determinados momentos sociopolíticos do país. Produziu textos reveladores de uma grande acuidade historiográfica e de grande relevância para o conhecimento do período das invasões francesas – El-Rei Junot – do liberalismo e da guerra civil – A conspiração de 1817 – Gomes Freire de Andrade e O cerco do Porto – e do período da República – Memórias.

Do lado direito da imagem vê-se um excerto da carta enviada por Francisco Owen, bisneto do Coronel, autor da obra, para Raul Brandão, datada de 1916, após a primeira edição do livro (Arquivo da SMS).

Com os melhores cumprimentos,

A Direcção da SMS